Da necessidade da escola laica
Val Salvagnini
Das historias que gosto de contar, muitas delas se passaram na sala de aula, e tantas outras foram decorrentes do torneio de bet’s que tornei tradicional no mês de outubro, em comemoração ao mês da criança, propositalmente, uma vez que nossa sociedade capitalista valoriza as compras e vendas nesse mês persuadindo a criança a convencer seus pais, que o fazem para tentar compensar o tempo que ficam longe de seus filhos. Pois bem, criei o torneio de bet’s, o TOB’s, justamente nesse mês, por se tratar de uma brincadeira folclórica, muito divertida e bastante esportiva, mas também com o intuito de tentar atrair a atenção de meus alunos para outras ocupações, que não seja somente a televisão ordenando a compra. E não é que deu certo? Mal inicio o TOB’s na escola e todo dia, quando volto para casa, vejo meus alunos brincando com seus amigos em frente a suas casas.
Desde então, todo ano, sempre ocorrem algumas histórias que me emocionam, como aquela em que dois meninos que se odiavam, e não faziam questão de esconder isso de ninguém, foram sorteados para serem parceiros no jogo. Evidentemente que de início gritaram que não jogariam com “aquele”, mas, métodos persuasivos à parte, acabaram jogando e, melhor que isso, deram o show de companheirismo, confiança, respeito, luta e dedicação para alcançar o primeiro lugar no tornei. Não foram os vencedores, mas ganharam muito mais que a medalha que lhes foi oferecida ao final do torneio.
Também tem aquela outra historia em que o menino não quis ganhar de seu melhor amigo. Todos gritavam; “vai” ele não ia, “bate” ele não batia, “corre” e ele não corria. Ninguém entendeu o porquê d’ele não ter se esforçado como havia feito em outros jogos, mas eu entendi: ele estava jogando contra seu melhor amigo e, humildemente, respeitosamente e discretamente ele preferiu perder o jogo a derrotar seu amigo.
Mas essas histórias conto numa outra ocasião, pois a que quero contar hoje é a ocorrida nesse ultimo TOB’s. é a historia do menino chamado João. Menino lindo e nobre como tantos outros. Negro, chegado da Bahia a menos de dois anos, pois bem, João exibia, como todo baiano que se preza, carinhosamente e orgulhosamente, seu belo sotaque e toda a sua realeza baiana. Havia trazido com ele, além disso, também sua religiosidade, que, menino inteligente, não a ostentava corriqueiramente, principalmente em se tratando de nossa região com predominância, quase que provinciana, do catolicismo e ainda, fruto dos novos tempos, o protestantismo.
Mas, volta e meia, João falava, ainda que de brincadeira, de sua religião. Como todo moleque dizia coisas como:
- “Eu sou preto”
_ “Eu sou da Bahia”
_ “Eu sou macumbeiro”
Minha bandeira é o respeito às diferenças, então perguntei a João sobre sua religião e ele me disse que sua avó era mãe de santo (Mãe Rita de Oyá) e trouxe um cartão de visitas da avó, acompanhado de uma solicitação de que viesse conhecer o terreiro, convite este que agradeci e de bom grado retribui junto com um amigo.
E então o TOB’s: João vinha liderando o torneio juntamente com a amiga Isabella e, invicto, ganhou certa confiança na conquista do 1º lugar. Até que Matheus e Vitória, numa onda de sorte, se destacaram e chegaram a final para disputar com João e Bella.
João iniciou o jogo na certeza de que seriam apenas alguma “beteadas” para uma vitória fácil, mas não foi bem assim, Matheus e Vitória estavam, como já disse, numa onda de sorte e vieram com tudo.
E o jogo iniciou com João e Bella realmente em vantagem, chegando logo-logo aos 24 pontos. Então anunciei, como sempre faço: “Só falta bater pra ganhar!”
Foi aí que João e Bella, aos 24 pontos, perderam a bet’s para Matheus e Vitória que, ponto a ponto, alcançaram os rivais equilibrando o jogo: 24 a 24.
Como já havia dito a João e Bella, repeti a Matheus e Vitória relembrando-os que agora era “só bater e ganhar”. Nas tentativas de Matheus e Vitória, João derrubou a latinha de Matheus e ouviu novamente a frase “é só bater e ganhar, João!” e quando a latinha foi novamente derrubada, dessa vez por Vitória, ambos me ouviram dizer de novo “é só bater e ganhar”.
Diante de tanta insistência (eles em ganhar e eu em salientar a suposta facilidade em ganhar), o jogo acabou ficando tenso de tal forma que João começou a pedir ajuda aos santos. Ainda timidamente falou: “Valei-me Iansã!”
Como de costume, os amigos riram e ele também, mas eu senti que aquele apelo estava longe de ser uma brincadeira.
Mais algumas jogadas se seguiram até que João derrubasse novamente aquela latinha e, quando o fez, antes mesmo de eu gritar aquel insistente frase, João despojou-e de sua descrição de sempre e em alto e bom tom bradou:
-“Eparrei, Iansã! Odoiá, minha mãe Yemanjá! Okê-arô, Oxossi!! – bateu na palma da mão, curvou o corpo sobre a bet’s, rodopiou em volta da latinha e ao final disse,– me ajude, mamãe oxum!
Então, Matheus arremessou a bola e a cena que se viu foi de arrepiar. A “beteada” de João foi tão forte e certeira que a bola parecia estar sendo levada pelos ventos de Iansã.
João e Bella correram para a conclusão do jogo e, ao gritar “vitória”, João jogou-se de joelho no chão com as mãos juntadas e, após flexionar a cabeça, levantou-se, ergueu as mãos para o céu, abriu os pulmões e gritou:
- Obrigado, mamãe Iansã!
Só depois disso foi que correu, abraçou Isabella e na sequência pulou em meus braços.
A emoção que tomou conta de mim não dá para descrever. Eu não estava torcendo para João, afinal de contas eu era o juiz do jogo e professor da turma, essas duas posições me obrigavam uma neutralidade, mas confesso que fiquei muito feliz com a vitória de João e Isabella, não pelo jogo, mas pela possibilidade que João teve de poder expressar publicamente sua religiosidade, como fazem todos os dias os católicos daquela escola ao rezar o Pai-Nosso na entrada para sala de aula.
Naquele dia percebi, na prática, a importância e a necessidade de a escola ser laica e mais do que isso, de dar liberdade aos alunos de se expressar religiosamente de acordo com seus princípios. Nunca concordei com manifestação religiosa na escola, principalmente porque elas reforçam o posto na sociedade e ao fazerem isso inevitavelmente refletem o preconceito desta. Espero que essa história possa contribuir como exemplo disso.